terça-feira, 2 de outubro de 2012

O MUSEU E A ARTE CONTEMPORÂNEA


Na arte contemporânea não existe limites estabelecidos para a invenção da obra, embora nem tudo em nome da liberdade, sem critérios e sem o risco de referências, a transgressão sem saber de que, divulgado como arte, é arte. Com o deslocamento dos suportes tradicionais, a exemplo da pintura e da escultura para outras opções estéticas ou experiências artísticas em processo, com o uso de novas tecnologias disponíveis ou não, mas principalmente com um novo conceito do que vem a ser uma obra de arte, hoje em dia, coloca em xeque o museu tradicional. Determinadas linguagens de natureza diversificadas da atualidade solicitam a reformulação de demandas e estratégias museias, um outro modelo museológico e museográfico.

 

Originário do ato de colecionar e preservar, os museus chegaram ao século XXI como instituições indispensáveis à vida e à memória das comunidades, pelo menos em teoria. Inseridos na vida das cidades e amparados por políticas públicas de cultura, muito bem argumentadas no papel, mas sem atrativos para atrair o grande público que prefere o espetáculo dos shoppings ou o paraíso dos templos evangélicos, que oferecem muito mais em troca de um pequeno dízimo: a memória do futuro, a esperança de vida eterna.

 

O fato é que o homem está sempre preocupado em preservar sua história e sua memória, colecionando artefatos. Ele tem acesso ao seu passado através de relatos ou depoimentos de testemunhas oculares, textos, enfim documentos. Quando se defronta com a coleção de imagens e objetos, particularidades da vida social, signos que habitam um museu, caverna moderna onde o homem urbano fixa nas paredes os enigmas de sua passagem no tempo ou no mundo. Com isso, não quero dizer que o museu é um caminho em direção ao passado, ele é um lugar de possíveis diálogos entre passado, presente e futuro. Olhar o passado é“estabelecer uma continuidade entre o que aparentemente deixou de ser e o que ainda vai ser”, (Frederico Morais).

 

O museu é o recipiente de conservar uma coleção e preservar uma herança estética e cultural de um tempo que passou e do presente para significar o possível futuro. Ele ocupa um lugar de destaque entre os diferentes elementos que compõem o sistema da arte. Assim como o hospício e a clínica, é provável ver nele um espaço de confinamento, um espaço sagrado, intocável e asséptico de exposição de objetos, que exige do espectador um ritual de contemplação, quase em silêncio, das chamadas obras de arte.

 

A partir das décadas de 1980 e 90, foram criados centros culturais e museus, em quase todo o mundo, sem se saber ao certo o que colocar neles. Surgiu também uma nova profissão na arte na opinião do critico carioca Wilson Coutinho: “a sua excelência, o curador... Os museus tornaram-se espetáculos que pouco importa o que se mete dentro deles...” . Como se não bastasse tudo isso, com algumas exceções, Tem-se a impressão de que o coquetel, a presença de celebridades e os acidentes do percurso registradas nas colunas sociais são mais importante que a exposição. Diz ainda Coutinho: “Depois que happenings e performances deixaram de ser engraçados, a instalação ocupou, até na maioria dos casos, a nova forma populista de exibição: mexe-se nela, anda-se, escuta-se barulhinhos, morde-se alguma coisa, sente-se o vento, somos obrigados a andar descalços, etc. o que tornou os museus e centros culturais verdadeiros playgrounds para alegrar o adulto idiotizado e a criançacriativa”. Estamos falando de um museu específico, o de arte. Se ele é o espelho de uma produção cultural, em tal contexto, reflete o narcisismo do espetáculo, em detrimento do ponto de vista da reflexão.

Sem recursos financeiros e depois que a responsabilidade cultural foi transferida para a iniciativa privada que tem como principal critério de seus patrocínios o impacto na mídia, muitos museus vêm se transformando em instituições de entretenimento para atrair grandes públicos consumidores de subprodutos culturais, quem sabe também futuros consumidores das marcas que patrocinam os seus eventos.

Um museu não é uma instituição de eventos culturais, o que nele é exposto não deve ser uma experiência isolada de uma política pública de cultura, sem a responsabilidade de um conselho curador, formado por especialistas da área. O gestor deve ser uma espécie de maestro que rege uma orquestra de intelectuais, críticos e técnicos especializados, para desenvolver enunciados para ser praticados e estabelecer relações mais estreitas com a comunidade.

 

Não é um lugar neutro, tem história e implicações ideológicas. Na primeira metade do século XX, o museu de arte era o depósito de repouso do moderno, questionado no início desse século pelo precursor das poéticas contemporâneas, Marcel Duchamp e seu novo paradigma, bem humorado, para a arte: não mais uma coisa criada pelo artista, mas a coisa que o sujeito reconhecido como artista escolhe e decide para ser a obra de arte.

 

Os museus passaram por reformas significativas nos últimos anos, ganharam prestígios e são considerados instituições culturais referência da cidade contemporânea. Surgiu até a indústria de museus, que atua mais a serviço do entretenimento e do turismo do que da memória, da história e do exercício da cidadania, mas capaz de movimentar a economia.Essa difícil conciliaçãocultura e economia que ocupa cada vez mais centro das atenções.

Desde quando a política e a economia reservaram à cultura um espaço quase que insignificante, dentro das prioridades da vida urbana, interesses alheios comprometeram o funcionamento das instituições culturais. A cidade precisa de tecnologias, partidos políticos, técnicos, políticos, empresários, especialistas em áreas diversas, etc., mas acima de tudo, precisa de uma tradição cultural e do exercício da cidadania, para que ela própria signifique. Um museu guarda mais do que obras e objetos de valor e de prestígio social, uma situação, um fragmento da história, portanto um problema cultural. Tudo que nele é exibido deve ter um compromisso com o conhecimento, a memória e a reflexão. Sua programação não deveria ser decidida por patrocinadores que tem como objetivo final vender produtos muitas vezes até desnecessários, e circular uma imagem de que está contribuindo para o “desenvolvimento cultural”.

 

Os museus se modernizaram conceitualmente, ressaltando sua importância para a sociedade e o direito à memória. O de arte como lugar passivo foi desarticulado com o Minimalismo na década de 1960 e logo em seguida a Arte Conceitual entrou em cena questionando de forma crítica e decisiva as instituições culturais, em especial o museu, o templo da sacralização da arte. O embate foi travado entre o museu e as novas propostas artísticas, efêmeras, privilegiando a ideia contra a materialidade que se armazena na instituição e alimenta o mercado de arte com mercadorias. A arte, desde então, passou a ser uma usina geradora de críticas, provocações e incômodos. Os mal-entendidos entre a arte e a instituição museal foram inevitáveis e imprevisíveis.

 

Falar de museu de arte no Brasil é difícil não lembrar Mário Pedrosa. Vejam a atualidade de seu pensamento, no texto “Arte Experimental e Museus”, publicado em 1960: “Diferente do antigo museu, do museu tradicional que guarda, em suas salas as obras primas do passado, o de hoje é, sobretudo, uma casa de experiências. É um paralaboratório. É dentro dele que se pode compreender o que se chama de arte experimental, de invenção.” Esse lugar de experiências é também ocupado por um acervo, é um lugar privilegiado do pensamento, da crítica e do lazer criativo para uma apropriação consciente do patrimônio.

 

O caráter problematizador da produção contemporânea praticamente rejeitou o estatuto da obra de arte como produto, isto contrariou interesses do mercado e o desejo de classificar e acomodar da instituição museológica. Para a arte contemporânea, o museu com sua arquitetura característica, com função de alojar uma diversidade de procedimentos, é um laboratório de ensaio do que pode ser uma obra de arte, um campo de experimentação. O museu é indispensável, é o ponto de partida e a estação de chegada. É ele que legitima o que se designa experiência artística. E o papel do museu, mais do que armazenar obras, é ser um espaço de pensamento crítico e educativo, frequentado por um público ativo e não mero observador do que está em exposição.

 

De certa forma, a arte produzida hoje, expõe feridas da cultura e do sistema da arte. E o imaginário museal tem uma importância na formação do olhar capaz de pensar sobre a arte, do olhar que deixou de contemplar passivamente para experimentar e vivenciar. A arte de hoje não nos diz nada como a arte do passado, ela convida o espectador para refletir sobre o que é uma obra de arte e suas relações com o sistema institucional. Nesse caso, o museu é o lugar privilegiado para o exercício do pensamento, até porque, as obras efêmeras são transferidas ou resgatadas para dentro do discurso e da instituição museológica pelos documentos, registros e reproduções.

 

Os museus, em particular os de arte, ultrapassaram a simples função de guardar e preservar bens culturais e assumiram várias tarefas e outras funções como o ensino livre da arte, foram equipados com bibliotecas, auditórios para debates, conferências, cinemateca. Umas das principais vanguardas brasileiras na arte o “Neoconcretismo” surgiu praticamente no curso do prof. Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A prática museológica tende a se ampliar e integrar o desenvolvimento urbano, seu objeto de estudo diz respeito também à paisagem urbana, ruas, praças, quarteirões. “Museu é o mundo; é a experiência cotidiana…”, (Hélio Oiticica). As cidades, principalmente as cidades históricas são espaços museográficos.

 

Almandrade

(artista plástico, poeta e arquiteto)

revista AS pARTEs , n º 6 - Porto Alegre

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário